domingo, 24 de julho de 2016

Valda Ferreira de Souza, Lagoa Azul, 2008


Foto de Luiz Vasconcelos, 2008. Manaus, bairro Lagoa Azul, 2008


Despejo Indígena no bairro Lago Azul, Manaus AM, 2008



"Depoimento de
Valda Ferreira de Souza/Mani Silva Satere

22 anos, etnia Sateré-Mawé
Dia 24 de abril de 2008

Naquele momento (referindo-se à ação de despejo pela tropa de choque da PM na Lagoa Azul em 10 de março de 2008), não sei o que passou pela minha cabeça para enfrentar todos aqueles policiais. Primeiro porque eles chegaram agredindo a gente, sem conversar foram empurrando e batendo. Não queriam saber se eu estava com criança, se eu estava grávida, e me empurraram em cima do fogo com violência. Cortaram nossas redes. Naquele momento pensei só em ficar lá mesmo, parada lá, para ver o que eles iriam fazer com a gente.

Eles chegaram cortando os punhos das redes. Ainda minha filhinha estava deitada na rede. Eles não queriam nem saber, cortaram as redes. Ela caiu no chão e foi o momento em que eu corri para pegá-la. E foi na hora em que eu parei no meio deles, quando eles iam levando tudo. E fiquei parado lá, não sabia se eles iriam me bater. Alguns dos policiais me chutaram e me cacetaram, como aparece nas fotos. Falavam muitas coisas nos ofendendo: que "a gente não era índio", que "a gente já era civilizado", que a gente era "invasor". Está certo que a gente errou um pouco lá, por causa que o dono tinha realmente o documento da terra, estava legal, e a gente não sabia. Mas se eles chegassem lá falando que o dono da terra estava legal e que a gente saísse, a gente ia se retirar de lá. Mas não foi isso que aconteceu. Chegaram agredindo a gente e batendo mesmo. Meu marido foi espancado, o André. Ele levou um... Com a espingarda, na boca dele, que espocou. Ele foi agredido e humilharam mesmo ele, antes daquele momento. Enquanto estavam batendo no meu marido, foi a hora em que eu fiquei com meu filho parada, enquanto eles foram me empurrando e me chutando. O que eu senti foi raiva mesmo dos policiais porque que fizeram isso conosco. A única coisa que falaram: foi o governador que mandou fazer isso com a gente. O presidente da Funai falou que tinha lavado as mãos por nós. Foi isso que eu fiquei com raiva, naquele momento fiquei cega, não queria nem saber se iriam me matar ou não. Realmente eu nem pensei no meu filhinho que estava no meu braço. Hoje quando eu olho aquelas fotos, me dá tristeza e remorso por terem feito isso com meu filho. Nem pensei em mim mesmo, se eu estava grávida, esperando um filho. 

Nosso espaço aqui na Redenção é pequeno, cada vez vai crescendo as famílias. Como eu, com esse que vai nascer, já tenho quatro filhos, e o espaço aí é pequeno para eles brincarem. Minha filha brinca de bola, aí ela joga lá para baixo, não dando para pegar, porque os brancos não devolvem mais a bola. Eles implicam também com a gente. Aí não dá para ela correr, pois se correrem as crianças caem. Aí o espaço é pequeno. Estamos lutando por um espaço... Lá é bonito, grande, plano, dava para plantar e colher. E aconteceu isso.

Nós soubemos por meio dos parentes que já estavam lá há cinco anos, que já tinham sido retirados.Tinham alguns Sateré-mawé, que vieram de Maués, Kokama e Tikuna. Então nós fomos para lá. Fomos praticamente ajudá-los a conquistar um pedaço para nós. Nós soubemos por meio de outros povos que já estavam lá. 

Nós não queríamos nem nos entrometer nos problemas deles [dos sem-terra] para lá. O problema deles era um, o nosso era outro. Falam que nós fomos usados pelos sem-terra. Não, nós não fomos usados. Até mesmo porque naquele momento ninguém nos defendeu. Nós mesmos ficamos lá, nem um branco nos defendeu. Tinha gente gritando lá: "não bate nela, não, ela é índia!". Essas coisas. Eles não queriam ouvir, falaram que a gente era mentiroso, que estavam nos usando. Os policiais mesmo falavam ofendendo, que a gente não presta para nada, só prestava para ser pisado, como eles fizeram com nossos cocais, nossas flechas, que eles quebraram tudo. 

A gente tentava avisar as organizações como o CIMI. A gente tentava ligar para elas, só que elas não. A gente foi à Funai. Ele foi lá também, depois falou que no outro dia iria. Só que isso não aconteceu, ele nos abandonou, a Funai que é para nos proteger. 

Algumas comunidades Sateré-mawé procuraram nossos direitos para ter um espaço melhor, outras não, estão para o outro lado à procura de outras coisas para si próprios que atrapalham um pouco. Mas têm outras organizações que estão interessadas na gente de ver um lugar melhor. Se nosso povo Sateré-mawé fosse tão unido assim por uma terra melhor acho que a gente conseguiria, mas não está havendo isso, não.

De modo geral, o principal desafio para nós é a terra e o trabalho mesmo. Não temos como trabalhar e plantar. Se tivesse uma terra grande que desse para trabalhar, acho que dava para tirar nosso sustento, mas não tem. Só vivemos do artesanato. 

Lutamos por uma causa boa, por um lugar melhor, um lugar digno, que todo mundo merece ter. Eu queria aquele pedaço de chão para morar com meus filhos, vê-los crescer, brincando num lugar bom. Outras coisas que eles falaram é que a gente não tinha direito, porque essa terra era lá para o meio do mato. Acho que não, nós temos direito de viver uma vida boa, não somos socados no meio do mato sem termos direito a nada. Nós também estamos sendo humanos e queremos uma coisa melhor também. 

Tem pessoas que moram na aldeia e voltam... Não é a questão da divisão "cidade" e "interior". Ele mora no "interior" e tem a relação com a "cidade". Não tem diferença de "cidade" e "interior". 

São 18 organizações. Nós gostamos muito de separar. Elas se relacionam com a base, não há um corte. Os parentes da base, do "interior", se hospedam nas nossas casas. E fazemos defumação na casa inteira."

ALMEIDA; DOS SANTOS. Estigmatização e território: mapeamento situacional dos indígenas em Manaus. Manaus: PNCSA/UFAM, 2008. p. 111-3.


"O progresso não gosta de índio" - Casa de caba








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