domingo, 4 de setembro de 2016

Árvore de defunto

Vovô Arlindo estava na mesa da cozinha e, como de costume, convidou filhos e netos para comerem o guisado. O prato do domingo era feito de pirarucu fresco. Atravessou a rua de sua casa e convidou tio Mário, chamou várias vezes sem sucesso, não tinha certeza se ele estava em casa... supôs que poderia ser o "novo" hábito manauara: entupir a casa de ar condicionado e trancar todas as portas durante o dia. 



No sábado, falou para sua filha mais velha, Rosimar, ir a taberna comprar óleo de dendê. Pela convivência de toda sua vida, a primogênita entendeu que seu pai gostaria que ela preparasse o guizado do peixão com o tal do óleo, "sem o leite de coco e muita verdura", ele disse. Vovô Arlindo sabia o que dizia.

Antes do prato principal ficar pronto, cozinhou quase um quilo de cará roxo e deixou sobre a mesa assim que acordou. Desta maneira, a prole esfomeada teria o que comer da manhã até o almoço. 

Depois que a panelada ficou pronta, do nada, tio Mário apareceu. A neta mais velha, que estava sentada na mesa gigante, comentou sobre a expedição feita pela manhã no terreno do tio. Explicou que ao observar minuciosamente toda aquela exuberante vegetação, um milhão de carrapicho's grudaram no seu vestido. Passado a raiva, verificou que o pé de limão estava morrendo, mas a goiabeira e o cajueiro estavam "carregadinhos", acrescentou que pareciam frutas de cemitério.

A morbidez de tal comentário, no meio do almoço de domingo, causou asco no seu avô, que havia acabado de colocar uma colherada de pirarucu na boca: 

"Eu não como goiaba, manga, jambo [...] fruta nenhuma de cemitério"

Todos riram e a neta metida a sabida perguntou o porque:

"Minha filha, uma árvore é como uma pessoa, sabe as nossas veias? onde passa o sangue? tem o mesmo dentro de um pé [de árvore]. As raízes vão fundo no chão, e no cemitério ela suga aquela lama de defunto. Eu não como aquilo por nada no mundo! aquilo é imundo!"

Tio Mário, exibindo um conhecimento altamente especializado, interviu e disse que se tratava da seiva, que era tudo transformado, e o que passava para fruta era apenas os nutrientes. Tia Mara, espocando de rir, deixou bem claro que comer  fruta  de cemitério era o mesmo que comer as frutas deliciosas do terreno do ti Nena. A única diferença era que o adubo tratava-se de cocô e não de restos humanos. Ti Nena tem a goiabeira mais saborosa do bairro por ter plantado em cima de sua fossa. 

Vovô Arlindo não disse nada a respeito da goiabeira do seu vizinho falecido, ti Nena. Ignorou todos os comentários da mesa, balançou a cabeça e afirmou que não comeria nada de árvore de defunto e ponto final. 



Fim

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